Tenho me mantido longe das notícias e mais longe ainda das notícias das notícias. Dessa vez, estou preferindo experimentar o caos sem qualquer elaboração intelectual—às vezes, ou quase sempre, a mente atrapalha. Emoções se misturam com pensamentos e o intangível ganha forma física. A queimadura da indignação, o suor frio da paranoia, a constrição no peito e nas vísceras da ansiedade. Quando me dei conta de que estava vivendo assim há anos resolvi parar. Infelizmente, a decisão coincidiu parcialmente com o retorno de Trump à Casa Branca.
Imagino que andem lendo por aí as notícias das notícias, ou a reinterpretação de analistas e jornalistas locais sobre aquilo que se passa no império em crise. O populismo é invariavelmente sintoma de degradação. O processo de degradação de um país é gradual, lento, modorrento até. Países não desaparecem após sofrerem degradação, às vezes nem por transformações passam. Mas isso não importa, pois poucas coisas na vida se resumem a resultados. São os processos que ditam ritmos e fluxos. A degradação norte-americana que já se estende por algumas décadas é visível para qualquer pessoa que tenha alguma intimidade com esse país. Na degradação surgem as piores qualidades de uma sociedade. No caso da norte-americana, essas são a hipocrisia, a paranoia, o culto ao dinheiro, o bangue-bangue, a truculência nas relações interpessoais, tenham elas o grau de intimidade que for. A figura do “Ugly American” está personificada no homem que ocupa a Casa Branca e isso não é novidade.
Faz uma semana que Trump se reinstalou. Desde então ele vem fazendo tudo aquilo que havia prometido em campanha da forma mais atabalhoada possível. Como agente do caos, o homem é imbatível. Não tem pra ninguém. Nem Milei, nem Bukele, e menos ainda para o Bolsofilho que haverá de concorrer à presidência em 2026—essa, ao menos, é minha conjectura do momento. Nem Caiado, nem Zema, nem o fulano de São Paulo, a tal “nova direita” devidamente conservadora e hipócrita em igual medida. Francamente, a parte mais lastimável da política brasileira é sua vira-latice e o desejo perene de querer ser caubói. Durango kid só existe no gibi, mas parte dos brasileiros desconhece ou esqueceu de Raul Seixas. Tomem:
Voltando a Trump. Tudo que vocês estão lendo realmente está acontecendo. Para além do que vocês estão lendo, há apatia e resignação. Boa parte dessa semi-catatonia se deve à implosão dos Democratas, muito semelhante ao PSDB. Aliás, o que não falta são as semelhanças com a América Latina. Não fosse a região tão presa aos seus complexos de inferioridade, talvez soubesse reconhecer-se como inspiração Trumpista. Trump é familiar para nós pois como ele já tivemos muitos. Essa familiaridade traz uma impressão equivocada de escárnio em alguns setores de nossas sociedades. Digo que o escárnio é equívoco pois ele tende a dar um verniz de bobagem ao caos. O caos nunca deve ser subestimado, mesmo quando o populista é meio burro. Trump não é burro.
Se vocês estão lendo esse artigo atrás de especulações, adianto: não faço. Querem saber o que eu acho que vai se passar por aqui? Pois bem, não sei. Se quiserem respostas prontas, leiam as notícias das notícias e as opiniões infundadas, uma quase redundância nos dias de hoje. A única coisa que sei é que a inflação nunca deixa ninguém na mão. Não sei dizer exatamente o que Trump haverá de colher de suas ações, mas sei que as principais serão (e já são) inflacionárias.
Tomem a questão migratória. Independetemente do que o governo Trump consiga viabilizar, ele já promoveu um imenso choque de oferta. Incerteza, dúvida e medo estão tirando trabalhadores das colheitas, dos serviços, das atividades que nenhum norte-americano com certos atributos quer fazer. As pessoas afetadas pela política e pela retórica de Donald Trump atuam nas áreas mais sensíveis para o bolso da população, aquelas que figuram de modo proeminente nos índices de preços. Pressionados pelo choque de oferta migratório e pela epidemia de gripe aviária que deixou de ser monitorada por ordem presidencial, os preços dos alimentos deverão subir expressivamente nos próximos dois meses. Está aí algo que o populista Trump não aprendeu com seus pares mais antigos da América Latina: inflação derruba populistas. Quando não derruba, trava as agendas de “reforma” pois a inflação é o caos em sua forma mais eficiente e arrasadora. Para um governo que criou um departamento, ou ministério, para garantir a tal eficiência, ela se revelará plena na capacidade ímpar de gerar inflação.
Os próximos capítulos devem trazer mais cenas familiares. Por exemplo, as reclamações de Trump quando o Fed resolver interromper o ciclo de quedas de juros. Será que as notícias das notícias tratarão as implicâncias de Trump com Jerome Powell do mesmo modo que trataram as falas de Lula sobre a atuação de Bob Fields Neto? Fiquem de olho por aí e mandem notícias das notícias das notícias. Ou melhor, nada mandem. Só observem. Faz-se muito pouco disso hoje em dia, observar. Todo mundo quer falar, influenciar, sacudir, chacoalhar. É sempre melhor observar. O problema da observação é que ela não traz frutos materiais, portanto existe uma escolha. Escolham bem.
De resto,
Mamãe, não quero ser prefeito
Pode ser que eu seja eleito
E alguém pode querer me assassinar
Eu não preciso ler jornais
Mentir sozinho eu sou capaz
Não quero ir de encontro ao azar